O princípio da hospitalidade entre os povos bantus

Saudando e acolhendo os visitantes

A hospitalidade pode ser definida como uma forma de acolher os visitantes, sejam eles membros da comunidade ou pessoas de fora. Euphrase Kezilahabi, um renomado romancista da Tanzânia, observa que “as saudações entre os Kerebe definem o parentesco e a boa vizinhança. Elas também delineiam o caráter e traçam as linhas de relações. As saudações são uma manifestação de humanidade e respeito pelas outras pessoas, conhecidas e desconhecidas.

“Visitar” e “saudar” são definidos pela mesma palavra, kubwacha. Uma visita (saudação) revela o quanto um parente valoriza uma relação e sugere como ele ou ela deseja que essa relação continue. Trata-se da mais alta manifestação de amor e solidariedade em meio à luta pela sobrevivência”[135]. Kezilahabi argumenta que o exemplo dos Kerebe é representativo da forma como muitas comunidades de língua bantu se relacionam com parentes e vizinhos. Embora a história demonstre que o passado não é isento de conflito e contestação, o sentido mais geral do argumento de Kezilahabi é válido. Bastante comuns entre muitos falantes bantu, as saudações devidas podem ser identificadas como parte de um paradigma da hospitalidade.

Historicamente, as antigas comunidades de língua bantu conceberam e adotaram um conjunto de práticas que privilegiavam a construção das relações, refletidas na importância do acolhimento e evidenciadas em uma série de ações que as pessoas realizavam.

Certamente, a hospitalidade começa quando as pessoas recebem as outras com saudações, mas ela vai muito além do momento inicial do encontro e inclui a oferta de comida, alojamento, abrigo, companhia, ideias, conselhos, conversas, proteção, uma atmosfera de inclusão generosa e homenagens aos pioneiros e espíritos ancestrais.

Historicamente, na África de língua bantu, as comunidades praticavam a hospitalidade para estender a generosidade às pessoas de fora, mas esse sistema de valores também era utilizado como uma ferramenta de controle social tanto dos membros da comunidade quanto de estrangeiros.

As expectativas com relação à hospitalidade se tornaram uma forma de proteção contra comportamentos antissociais como a cobiça, a exclusão, a busca do interesse individual em detrimento das necessidades da comunidade, a maldade e a inveja contra outros membros da comunidade e a busca excessiva de poder. Os padrões acerca do que constituíam atos de hospitalidade e da quantidade e qualidade suficientes de generosidade variavam, mas, comumente, esse era um valor central nas economias morais e expectativas sociais de muitas comunidades de língua bantu.

A hospitalidade é uma lente através da qual é possível compreender as cosmovisões e as práticas dos falantes bantu na longue durée. Os princípios da hospitalidade parecem conectar e relacionar-se com as várias dimensões da vida dos povos bantu, discutidas nos capítulos anteriores.

Alguns exemplos incluem as relações entre os ancestrais e os vivos, o empréstimo e o compartilhamento de tecnologias científicas, o valor colocado na integração de novos e antigos membros para criar e recriar um senso de pertencimento, o respeito aos pioneiros da terra, práticas sociais como as iniciações e a abordagem heterárquica em muitas esferas da vida, enfatizando a construção de relações laterais. As raízes profundas da hospitalidade ainda não foram totalmente compreendidas, mas, considerando os 5.500 anos cobertos neste livro e os papéis fundamentais que os migrantes bantu – pioneiros nas regiões de fronteira – desempenharam em diferentes fases dessa história, o valor preservado das saudações e da hospitalidade, em muitas gerações e paisagens sociais diferentes, faz bastante sentido.

Trecho de: “África Bantu: De 3500 a.C. até o presente” de Catherine Cymone Fourshey. Capítulo Negociando a Hospitalidade