Macumba de raiz Bantu

Há um registro de 1743 de uma mulher de Luanda, Luzia Pinta, que prestava “serviços espirituais” à população de Minas Gerais por meio de um ritual conhecido por Calundu. Esse culto consistia, basicamente, num processo de invocação de um espírito por meio de cantos e toques de atabaque, possessão (ou incorporação) do sacerdote por esse espírito e atendimento ao público feito pela entidade com ervas, raízes e oferendas (Daibert 2015: 13).

Outras angolanas também praticavam esse rito e no calundu de Branca, outra africana, a base ritual era a mesma e contava também com mpemba, uma pedra branca usada nesse caso como uma espécia de giz que servia para desenhar coisas no corpo da sacerdotisa a fim de intensificar a ligação entre ela e os espíritos a serem manifestados em seu corpo (Daibert 2015: 15).

Os povos Bantu que habitavam a região que hoje compreendem Congo e Angola já tinham práticas espirituais muito bem consolidadas antes da diáspora forçada pelo período da escravização. Quero chamar atenção aqui para as práticas Bantu de culto aos ancestrais por meio da manifestação espiritual. Não de uma divindade ou de um ancestral muito longínquo mas de um espírito que fala, anda, fuma, bebe, reivindica por meio da fala direta, cura, confraterniza etc. Muitos desses povos cultivavam uma relação estreita com seus antepassados por meio de pessoas com certo tipo de especialidade em ouvir e manifestar esses mortos. Diversas necessidades eram operadas por meio dessa relação e não vou me arriscar aqui a divagar sobre elas para não cair num anacronismo ou romantização ou ainda numa cristianização dessas práticas centro-africanas.

O que quero destacar é a relação entre essas pessoas e seus mortos por meio de um especialista espiritual que manifestava de maneira corpórea esses ancestrais para diversas finalidades entre elas cura e aconselhamento (Daibert 2015: 9–11).

A imagem acima é um símbolo chamado Diekenga, ou Cosmograma Bakongo, utilizado pelos Kongo, um povo Bantu, em forma de cruz (anterior a chegada da cristianismo) que representa os ciclos do Sol, da vida e do tempo². Demonstra também a conexão entre o mundo dos vivos e dos ancestrais sendo, respectivamente, Nseke e Mpemba. Musoni está relacionado à concepção, Kala ao nascimento, Tukula ao ápice, o momento mais forte, e Luvemba à morte ou o pôr do Sol.

Do ponto mais baixo do círculo, à meia noite do trajeto solar, dá-se a concepção e vem Musoni, em amarelo, o tempo de germinar, do crescimento silencioso que antecede o nascimento. Após o nascimento acontece Kala, representado pela cor preta, tempo de crescimento, aprendizado. Com o amadurecimento vem Tukula, em vermelho, o ápice da liderança, da força, quando a linha vertical faz a conexão direta com o mundo dos ancestrais. Após o sol ao meio dia, se inicia o processo de decadência que inevitavelmente levará à morte física, Luvemba, representado pelo branco dos ossos, do pó, deste tempo de silêncio que antecede outro grande ciclo vital².

Nesse símbolo milenar achamos nomes familiares para o povo de umbanda, Mpemba e Kalunga.

Mpemba, o mundo dos mortos, também é o nome dado à pedra que dona Branca usava em seu calundu, no séc. XVIII, para riscar algo em seu corpo a fim de intensificar a conexão com os espíritos. É o mesmo nome da pedra branca (pemba) que se usa nas giras de umbanda para evocar a energia das entidades e das divindades para que os trabalhos ocorram. Kalunga no cosmograma é a linha que divide o domínio dos vivos e dos mortos, o limite que o Sol transcende, pelo horizonte do oceano, num ciclo diário.

Na umbanda, Calunga é o nome dado aos cemitérios e ao mar (Calunga Grande), entendidos como conexões entre os mundos físico e espiritual. Interessante pensar ainda que no cosmograma quando é meia-noite para os vivos é meio-dia para os mortos, o que representa o ápice de força no mundo dos ancestrais e para a umbanda a Meia-Noite, Hora Grande, é e sempre foi uma hora de poder. Após essas comparações é pertinente também acrescentar que “umbanda”, com essa grafia e pronúncia, é uma palavra do kimbundu, idioma Bantu, que significa “Magismo. Arte ou maneira de encantar, de curar: kubanga. Produção de atos mágicos” (Assis Junior 1923).

Como praticante de umbanda no século XXI a história de Zélio de Morais e do Caboclo-Padre me foi contada exaustivamente e após descobrir que existiam mulheres de origem Bantu, no século XVIII, incorporando espíritos para atendimento (pago ou não) com uso de cantos e atabaques para invocação e pemba para riscar desenhos de poder fica difícil acreditar que o que eu faço hoje nasceu em Niterói, dentro de uma casa kardecista, no ano de 1908. Fica mais difícil ainda quando Kalunga para os Bantu de Congo-Angola era a linha entre os mundos físico e espiritual e ainda: “umbanda” sendo uma palavra usada para designar práticas mágicas entre esse mesmo povo. Luzia Pinta praticava seu calundu em 1743, 114 anos antes da primeira publicação de Kardec e 165 anos antes de Zélio de Morais ter sua primeira manifestação mediúnica. Porém, mesmo com essas informações seria anacrônico e irresponsável dizer que o que Luzia Pinta, Branca e tantas outras africanas e africanos faziam era umbanda — e não era, era calundu (ou outra coisa). Apesar disso, fica evidente que existe uma territorialidade Bantu, especificamente Congo-Angola, nas umbandas.

Com a finalidade de estender o mito fundador há ainda o argumento de que não foi Zélio que fundou o culto à caboclos, pretos-velhos, exus, pombagiras etc mas sim quem organizou a ritualística. E por isso gostaria de colocar aqui breves considerações sobre o Pai José Cabinda (1857), o feiticeiro Juca Rosa (1870), a Cabula (1890) e as diversas macumbas cariocas.

Por Lucena Fiorotti