O Fanatismo Candomblecista e as Makumbas

mae alda de sete nos em um jornal
Foto 1: Mãe Alda de Sete Nós da Guiné (ou mãe Alda de Ogum Megê), minha avó de santo, no jornal Luta Democrática. Anos 70. Foto 2: Mãe Alda, em uma homenagem de um jornal aos seus 30 anos de santo, nos anos 70.

A arrogância de algumas pessoas de religião de matriz africana é um problema sério. Arrogância de querer apontar quem pratica religião afro indígena verdadeira, “pura” e quem não, apontar quem cultua Orixá e quem não… É um problema grande, e não é recente, não! É bem antigo: nos anos 70, uma mãe de santo famosíssima do Rio de Janeiro, feita no santo nos anos 30 por um sacerdote Yorubá, e deu obrigação no Candomblé Ketu, já dizia coisas como “antigamente no Rio não existia Umbanda (branca), tinha o Omolokô, a Makumba, mas era ajeitadinho, não era como é hoje”, “estão pegando coisas do Candomblé e botando no Omolokô” (detalhe: falando isso para o entrevistador, uma pessoa que fez parte de uma casa de Omolokô super tradicional) e também dizendo que não entendia nada de nação Angola, desfazendo dessa nação do Candomblé. Se naquela época já era assim, esse movimento todo de arrogância de algumas pessoas puristas da religião Candomblé é uma coisa que já iria acontecer, uma hora ou outra.
Na entrevista, esse “ajeitadinho” que ela falava não só sobre Omolokô, Makumba, mas também sobre Angola e sobre o que ela considera como “Ketu de verdade”, e falando do que era considerado puro, com pureza. Mas vejamos bem: o que é pureza? Ainda mais falando de Candomblé?

Usar folhas, raízes e sementes originárias daqui e ensinadas pelos ancestrais indígenas é culto Yorubá puro? Caapeba pariparoba, cainana, urucum (porque antigamente não se trazia ossum da África pra pintar iaô! Urucum inclusive é considerado de Xangô!), mandioca / aipim, folha de caruru, amendoim, dar milho pra Oxóssi, fava de jaborandi, etc. Puro? Vários elementos de origem Bantu como o mokan e o contra egum, dizem que até o kelê é Bantu, palavras Kimbundu em cantigas e rezas, fundamentos de um, de outro, várias e várias coisas que são diferentes do culto tradicional Yorubá… Onde está a pureza? Respondo: não está, porque ela não existe. O conceito de pureza é ocidental, europeu. E esse pensamento do puro, do passado perfeito onde tudo era puro e perfeito, e agora tudo é “degenerado”, e aí a partir disso se cria um movimento de purificação que vem de um lugar e um tempo que ninguém mais conhece… Tem que tomar cuidado com isso, porque essa é a mesma lógica do fascismo. E não é de se espantar, que grande parte dos pais e mães de santo que adoram escrever em Yorubá por aí e falar asneiras, sejam brancos. Uma coisa leva à outra, não?

Assim como o Candomblé não é puro, uma Umbanda raiz como o Omolokô ou Almas e Angola, entre outras, como um Tambor de Mina (e não falo do da Casa das Minas, falo do das tantas outras casas), um Catimbó, um Terecô, um Batuque, não vai ser pura. Nenhuma religião de matriz africana é “pura”, porque essa pureza não existe.

Essa arrogância religiosa do que é verdadeiro e do que não é, finge esquecer (e muito mal fingido) de todas essas misturas no Candomblé, e finge esquecer também do tamanho do território de Pindorama, a Terra das Palmeiras, mais conhecida como Brasil. Essa religião veio de um lugar do estado da Bahia, no recôncavo baiano, e somente possui uma religião parecida, em Recife, Pernambuco, que é o Xangô do Nordeste ou Nagô. De resto, tem uma infinidade de religiões de matriz africana e indígena por toda essa terra. E a maioria delas cultua divindades africanas, que mesmo que muitas vezes sejam de origens diferentes ou sejam de várias origens ao mesmo tempo, são quase todas chamadas pelo mesmo nome: Orixás.

Orixá, pra muito além do que significa a palavra e do culto Yorubá, é a essência da natureza. Orixá, aqui, virou uma coisa própria. Mesmo que a energia seja praticamente a mesma, Orixá é próprio aqui. E cada religião de matriz africana vai ter suas formas de entender Orixá. Com suas misturas, influências, nuances… Na tradição de Omolokô que eu faço parte, por exemplo, Orixá é o Bacuro, o Inquice, as divindades indígenas, e também o próprio Orixá Yorubá. É um amálgama, uma mistura. Seu Cangira Mungongo é Ogum que é Nkossi. Cinda é Oxum que é Dandalunda que é também a Iara, e a Iara também é a sereia que é Iemanjá. Cinda lodê, lode ô, Cinda lodê, lode á. Ó flor de maio (planta nativa nossa), ó flor de maio, se a minha mãe é Cinda flor de maio ora ie ieu, ó flor de maio.
Auê General Guanabara, auê capitão Marambaia… A sua espada é de ouro, sua coroa é de rei, mas é Ogum Matinada, seu Cangira Mungongo, Ogunhê… Ogum de malê, Ogum de nagô.

Não podemos olhar Orixá, tradição, misturas que aconteceram ao longo do tempo, com esse olhar maldito da purificação de ninguém sabe do quê. Até porque, se tratando de Omolokô por exemplo, nossa história tem seus primeiros registros a mais de 150 anos, e a religião já existia! Uma época em que Zélio de Moraes nem pensava em nascer, o Candomblé nem era conhecido aqui direito, e já haviam misturas nessa Umbanda de base Bantu e Indígena, com misturas Yorubá, Jeje e muçulmana. As Makumbas, as Umbandas, as religiões de matriz africana têm história documentada. Essa arrogância e esse purismo não podem caber, e precisam acabar. Até porque, o machado de Xangô e a espada de Ogum têm duas lâminas. Corta de cá, corta de lá. E pelo menos daqui de onde esse texto veio, que já tem “cortadas”, podem vir muito mais.

Humildade. Humildade é a palavra. 

Continua…

Raphael Puri
Raphael Puri

Makumbeiro e indígena Puri

Nascido no Rio de Janeiro numa família que praticava o kardecismo, mas que tinha ligação com as Makumbas, sempre mostrou mediunidade e interesse pelo sagrado. Começou na Umbanda aos 14 anos num terreiro muito antigo, e após uma dissidência no lugar foi pra outro, de uma umbranca "modernosa". Após decepções com a umbranca, foi para o Candomblé, onde fez o santo na nação Ketu, e depois mudou as águas para a nação Angola.
Sempre teve um caminho muito forte com a Makumba, e ao estudar e pesquisar, conheceu o Omolokô. Atualmente é filho do Grupo Espírita Unidos pela Caridade Vovó Catarina do Cruzeiro - GUCVC de mãe Fátima de Xangô, casa que mantém uma linhagem de Omolokô muito antiga.
Se reencontrou com sua ancestralidade indígena em 2021, quando conheceu o povo do qual pertence, Puri, e está em retomada ancestral, linguística e cultural.

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